terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Algumas Características dos Decretos de Deus

Os decretos de Deus têm certas características ou proprie­dades que passo a considerar agora, se bem que um tanto resu­midamente.
1. Unidade

Uma das propriedades dos decretos de Deus é que eles são realmente um e não muitos, como talvez sejamos levados a pensar quando o termo é empregado no plural. Falamos dos decretos de Deus, no plural, porque somos criaturas do tempo, e na limitação de nossas faculdades não vemos todo o propósito e plano de Deus de uma vez, mas “em aspectos parciais e re­lações lógicas”.

“Como nossa mente é finita, e como nos é impossível abranger num único ato de compreensão inteligente um número infinito de acontecimentos em todas as suas várias relações e aspectos, necessariamente ve­mos os acontecimentos em grupos separados, e con­cebemos o propósito de Deus, com eles relacionados, como atos distintos e sucessivos”.[1]



Mas o fato é que o plano de Deus é apenas um. Não há acontecimentos isolados. São entrelaçados, ligados entre si, formando um todo maravilhoso.

“Cada evento que ocorre no sistema de coisas é entrelaçado com todos os outros em interminável involução... O colorido das flores e o ninho dos pássaros relacionam-se com todo o universo material. Até mesmo em nossa ignorância podemos notar um fato químico relacionado a uma miríade de outros fatos, classificados sob os títulos de mecânica, eletricidade, luz, e vida”.[2]

“O termo Decreto de Deus aparece primeiro no sin­gular, visto como Deus tem apenas um plano que in­clui tudo. Ele vê todas as coisas de um só relance. Por conveniência, os aspectos separados desse plano podem ser chamados decretos de Deus; mas daí não se deve inferir que a compreensão infinita de Deus avance por etapas ou em série. Nem pode haver qual­quer possibilidade de ser esse plano uno alterado por omissões ou adições. Nem é verdade que Deus man­tenha um propósito distinto e desconexo concernente a cada aspecto de seu intuito único. Com Deus há um decreto imutável que abrange cada pormenor, até a queda de um pássaro no chão. É a cognição divina desde toda a eternidade. “Conhecidas de Deus são todas as suas obras desde toda a eternidade” (At.15:18).”[3]

Dabney diz o seguinte sobre a unidade do decreto de Deus:

“É um ato único da mente divina, e não muitos. Este parecer é pelo menos sugerido pela Escritura, que fala comumente de “um propósito”, “um conselho”. É uma conseqüência da natureza de Deus. Como seu conhecimento natural é de todo imediato e contem­porâneo, e não sucessivo como o nosso, e a compre­ensão desse conhecimento é sempre infinitamente completa, seu propósito, nele baseado, deve ser um ato singular, que tudo abrange, e simultâneo. Além disso, o decreto todo é eterno e imutável. Tudo por­tanto deve coexistir, sempre junto, na mente de Deus. Por fim, o plano divino apresenta-se como único em sua efetuação: causa liga-se a efeito, e o que era efeito torna-se causa; influências de eventos sobre eventos entrelaçam-se e descem em correntes que se ampli­am para subseqüentes eventos; de sorte que todo o resultado complexo é interligado através de cada parte. Assim como supõem os astrônomos que a re­moção de um planeta para fora de nosso sistema mo­dificaria mais ou menos o equilíbrio e as órbitas dos demais, assim o fracasso de um evento, nesse plano, perturbá-lo-ia diretamente ou indiretamente. O pla­no de Deus é jamais efetuar um resultado à parte de sua própria causa, e sim sempre por força dessa cau­sa. Como o plano é assim, uma unidade em sua efe­tuação, deve tê-lo sido igualmente em sua concepção. A maioria dos erros que têm aparecido em doutrina partiu do engano de imputar a Deus essa apreensão de seu propósito em partes sucessivas, a que as limi­tações de nossa mente em concebê-lo nos mantêm presos.”[4]

O poder de conceber um plano em sua inteireza, de con­templar todas as suas partes de uma vez, do princípio ao fim não é estranho mesmo às criaturas finitas e contingentes que somos. Verdade é que podemos modificá-lo, quer em parte, quer completamente, segundo novas idéias que nos apareçam, mas o fato é que no princípio temos um plano que constituí uma unidade. É o caso de uma planta preparada por um ar­quiteto. Traçando o projeto de uma construção, ele tem de pensar no conjunto das partes do edifício e em cada uma delas de per si, dos alicerces à cobertura. Qualquer alteração que possa fazer no seu plano deve-se às limitações humanas. Deus, porém, sendo infinito, não precisa modificar seu plano singular e original, que tem muitas partes, mas que é realmente um plano ou decreto único.
2. Eternidade

Outra propriedade do decreto de Deus é sua eternidade. Se Deus é eterno, seu decreto também há de sê-lo. Natural­mente é executado no tempo, em etapas sucessivas, mas foi con­cebido na eternidade numa única intuição. Este fato vem afir­mado nas Escrituras, em passagens como as seguintes:

“Conhecidas de Deus são todas as suas obras desde o prin­cípio do mundo” (At.15:18). “O reino que vos está prepara­do desde a fundação do mundo” (Mat.25:34). “Deus nos esco­lheu desde o princípio para a salvação” (2Tess.2:13). “As­sim como nos escolheu nele antes da fundação do mundo” (Ef.1:4). “Que nos salvou... conforme a sua própria determina­ção e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos” (2Tim.1:9). “Cristo, conhecido com efeito, antes da fundação do mundo, porém manifestado no fim dos tempos, por amor de vós” (1Ped. 1:20). Todas estas passagens mostram que o decreto de Deus foi concebido antes do princípio do mun­do e, portanto, antes de começar o tempo — na eternidade.

“O decreto de Deus... enquanto se relaciona com coisas fora de Deus, permanece como ato no íntimo do ser divino, e é por isso eterno no sentido mais rigo­roso da palavra. Daí também participar da simultaneidade e da falta de seqüência do eterno... A eter­nidade do decreto também implica que a ordem em que os seus diferentes elementos estão uns para com os outros não pode ser considerada temporal, mas somente lógica. Há uma real seqüência cronológica dos eventos, à medida que se efetuam, mas não no de­creto a seu respeito”.[5]



“Quando as Escrituras falam de um decreto a prece­der outro, a ordem está na execução deles, e não em sua estruturação”.[6]



“Se Deus, antes de cada ato, teve a intenção de agir, quando surgiu essa intenção? Nenhuma resposta será sustentável até que recuemos à eternidade. Porque o conhecimento de Deus sempre foi perfeito, para Ele não há nada de novo, que ocasione a formação de novo plano. Sua sabedoria sempre foi perfeita, para lhe oferecer a mesma orientação na escolha de meios e fins. Seu poder sempre foi infinito, para impedir qualquer fracasso, ou resistência bem sucedida, o que o faria recorrer a novos expedientes. Seu caráter é imutável, de sorte a não mudar Ele injustificadamente sua própria mente. Nada portanto existe que justifi­que qualquer adição ao seu plano original. Podemos contudo raciocinar mais compreensivelmente. Como vimos, é só o propósito de Deus que faz uma parte do possível tornar-se realidade. Como toda a scientia simplicis intelligentiae de Deus esteve com Ele desde a eternidade, falta-lhe de todo razão para que alguma parte do decreto seja estruturada depois de outra".[7]

Deus podia ver de uma vez tudo o que era possível. Por­tanto, quando Ele decidiu adotar determinado plano, tinha-o completo em sua mente infinita, quer em sua totalidade, quer nos mínimos detalhes. É neste sentido que seu decreto é eter­no, isto é, eterno em sua concepção, mas temporal em sua execução.
3. Imutabilidade

Outra propriedade ou característica do decreto de Deus é sua imutabilidade ou invariabilidade. Que nem Deus nem seus planos jamais mudam isto é ensinado claramente na Bíblia. “O conselho do Senhor dura para sempre, os desígnios do seu coração por todas as gerações” (Sl.33:11); “Tu és sempre o mesmo” (Sl.102:27). “Eu, o Senhor, não mudo” (Mal. 3:6). “Serão igualmente mudados; tu, porém, és o mesmo” (Heb.1:12). “Jesus Cristo ontem e hoje é o mesmo, e o será para sempre” (Heb.13:8). “Toda boa dádiva e todo dom perfeito é lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode exis­tir variação, ou sombra de mudança” (Tg. 1:17). “Se ele re­solveu alguma coisa, quem o pode dissuadir? O que ele deseja, isso fará” (Jó 23:13). “O meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade” (Is.46:10).

Mudamos nós, que somos finitos, limitados e temporais. Deus é infinito, ilimitado e eterno; e por conseguinte nem Ele nem seus planos podem mudar. Mudamos nós, devido à influ­ência de outros seres e de circunstâncias inesperadas. Deus po­rém é absolutamente independente de todas as circunstâncias e de todo outro ser, porque Ele mesmo é o autor de todas as circunstâncias e de todos os seres.

Agostinho declarou:

“Deus não quer uma coisa agora, para logo mais que­rer outra; mas aquilo que ele quer, Ele o quer uma vez por todas e para sempre; não repetidamente, ago­ra isto e daí a pouco aquilo; não quer depois o que antes não queria; nem quer agora o que antes não queria; porque uma vontade assim é mutável, e nada mutável é eterno”.[8]

“Nunca pode haver qualquer aumento em sua sabe­doria, nem surpresa para a sua presciência, nem re­sistência ao seu poder, e portanto nunca pode haver qualquer ocasião de inversão ou modificação desse propósito infinitamente sábio e justo que, por força das perfeições de sua natureza, Ele tomou desde a eternidade”.[9]

“O homem pode mudar e muitas vezes muda mesmo seus planos por vários motivos. Pode acontecer que lhe faltou seriedade de propósito, não viu o que es­tava implícito no plano, ou lhe faltem forças para rea­lizá-lo. Mas em Deus nada disto se pode conceber. Seu conhecimento não é deficiente, nem seu poder, nem sua veracidade. Conseqüentemente, Ele não pre­cisa mudar seu decreto devido a um engano ou inca­pacidade de cumpri-lo. E não o mudará visto como é fiel e verdadeiro”.[10]

Mas se tudo isso é verdade, como podemos explicar os casos em que a Bíblia diz que Deus modificou sua atitude para com os homens, e até mesmo que se arrependeu? Quando a Bíblia diz que Deus se arrependeu ou modificou seu plano, ela emprega linguagem antropomórfica, como tantas vezes acon­tece nas escrituras. Por exemplo, em Gen.3:9 lemos que Deus chamou Adão, dizendo-lhe, “Onde estás?” Temos o direito de concluir que Deus não sabia onde Adão estava? Porque dese­java que Adão viesse e confessasse seu pecado, Ele o procurou e fez aquela pergunta, como se não soubesse onde ele se encon­trava. Gen.18:20-22 oferece-nos outro exemplo de antropomorfismo. Aí Deus fala a Abraão como alguém que, tendo ou­vido maus rumores, decidiu verificar pessoalmente os fatos antes de tomar quaisquer medidas. Vale esse modo de falar co­mo argumento contra a onisciência de Deus? Certamente não. Por conseguinte, as passagens que falam de Deus haver-se arrependido, como Gen.6:6 e 1Sam. 15:11, não contradizem aqueloutras que descrevem o verdadeiro caráter de Deus, sem empregar quaisquer antropomorfismos. O profeta Samuel, por exemplo, disse, “A Glória de Israel não mente nem se arrepen­de, porquanto não é homem, para que se arrependa” (1Sm.15:29). E é muito interessante notar que esta passagem se en­contra no mesmo capítulo onde Deus diz: “Arrependo-me de haver constituído rei a Saul” (1Sam.15:11). Veja-se Num. 23.19.

Quando lemos que Deus modificou seus planos, decidindo, por exemplo, não condenar aqueles a quem antes havia amea­çado, não foi realmente Deus que mudou, e sim os homens. Quando estes se arrependeram de sua atitude para com Deus, ele retirou sua ameaça exatamente porque não muda, porque é sempre o mesmo, a aborrecer o mal e a amar o bem, e está, pronto sempre a perdoar e a aceitar os de coração quebrantado e contrito. (Veja-se Ex.32:14; Jz.2:18; 2Sam.24:16; 1Reis 21:17-29; Amós 7:1-6; Jonas 3:10; Sl.106:43-45; Jer.18:8).
4. Universalidade

Outra propriedade do decreto de Deus é a sua universali­dade. Compreende tudo. Inclui tudo, todas as pessoas, todos os atos, todos os fenômenos, todas as circunstâncias. Estende-se a todos os fenômenos do mundo físico, com todas as ações da esfera moral, boas e más. Como veremos adiante, isto não quer dizer que Deus seja o autor do pecado, ou que Ele faça violência à livre agência. Mas a Bíblia ensina que Deus incluiu em seu decreto tanto as boas ações dos homens (Ef.2:16), como as más (Gen.45:5-8; Prov.16:4; At.2:23; 4:27,28); que Ele incluiu em seu plano tanto os fins como os meios, tanto as cau­sas como seus efeitos (Sl.119:89-91; At.27:25-36; 2Tess.2:13; Ef.1:4). Ele decidiu quanto à duração da nossa vida (Jó 14:5; Sl.39:4) e quanto ao lugar de nossa habitação (At.17:26). Numa palavra, o decreto de Deus inclui tudo quanto acontece, até aquilo que para nós é acidental e contingente. (Gen.24:12-28; 1Reis 22:34,35; Prov.16:33). Deus não somente é o Autor, como também é o Governador do universo inteiro, e conseguintemente nada acontece contra a sua vontade, nada es­capa ao seu decreto que tudo abrange.

“O mesmo propósito divino que determina qualquer evento, determina-o como efeito de suas causas, pro­movido por seus meios, dependente de suas condições e acompanhado de seus resultados. As coisas não acontecem isoladas, nem foram predeterminadas para acontecer assim. Noutras palavras, o propósito de Deus abrange os meios assim como o resultado ou conseqüência impendente; a ordem, as relações e su­bordinações de todos os eventos, não menos essenciais ao plano divino do que os próprios eventos. Com re­ferência à salvação dos eleitos, o propósito de Deus não é somente que eles sejam salvos, mas que creiam, se arrependam e perseverem na fé e na santidade para a salvação”.[11]

5. Eficácia

Outra característica ou propriedade do decreto de Deus é sua eficácia. A Bíblia declara inequivocamente que nada e nin­guém pode frustrar o propósito de Deus, e isto é admitido logi­camente por todo ser pensante, que crê na onipotência divina. “Este é o desígnio que se formou concernente a toda a terra; e esta é a mão que está estendida sobre todas as nações. Porque o Senhor dos Exércitos o determinou; quem, pois, o invalidará? A sua mão está estendida; quem, pois, a fará voltar atrás?” (Is.14:26,27). “O meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade” (Is.46:10).

Mesmo quando os homens fazem o que querem, até mesmo pecando contra os mandamentos divinos (como no caso dos irmãos de José e no daqueles que mataram Jesus), no fim eles agem segundo o decreto de Deus. O Senhor cria os homens e também as circunstâncias em que estes vivem, os quais são le­vados a agir de conformidade com o que antes foi determinado, sem contudo serem coagidos a proceder assim. Agem de acordo com a sua própria natureza, inclinações e reações em certas circunstâncias. E o que Deus tem de fazer, para levá-los a proceder segundo o seu plano, é colocá-los nessas circunstâncias. Rodeados de tais circunstâncias, eles procedem de acordo com o seu próprio caráter, que se tornou pecaminoso depois da queda, e desta forma são responsáveis pelo que fazem, embora que ao mesmo tempo cumpram os planos divinos.

“O decreto prove em todos os casos que o evento se efetue através de causas que agem de uma maneira perfeitamente condizente com a natureza desse mes­mo evento. Assim, no caso de cada ato livre de um agente moral, o decreto dispõe ao mesmo tempo (a) que o agente proceda com liberdade; (b) que seus an­tecedentes e todos os antecedentes do ato em questão sejam o que são; (c) que todas as condições presentes do ato sejam o que são; (d) que os atos sejam perfei­tamente espontâneos e livres da parte do agente; (e) que venham a realizar-se com certeza. (Sl.33:11; Prov.19:21; Is.46:10).”[12]

6. Liberdade

Outra propriedade do decreto de Deus é sua completa li­berdade. “Quem guiou o Espírito do Senhor? ou, como seu con­selheiro, o ensinou? Com quem tomou ele conselho, para que lhe desse compreensão? Quem o instruiu na vereda do juízo e lhe ensinou sabedoria e lhe mostrou o caminho de entendimen­to?" (Is.40:13,14). “Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem primeiro lhe deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele e por meio dele e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eterna­mente. Amém" (Rom.11:34-36). Se estas passagens querem di­zer alguma coisa, dizem que Deus é inteiramente independente em seu ser e seus atos.

Quando Deus decidiu criar o mundo como este é, e decretou o curso da história, Ele decidiu isto em inteira liberdade. Ele estava só. Não havia ninguém a quem consultasse. A existên­cia das coisas e dos seres que vieram a existir dependeu em tudo de sua vontade e poder. Ele só podia ser livre no delineamento dos planos da criação. E reconhecer sua liberdade em tudo que faz é apenas reconhecer sua soberania.

“Em decretar Ele foi levado unicamente por sua von­tade infinitamente sábia, justa, benevolente e boa. Ele sempre tem resolvido fazer como lhe apraz, e o que lhe apraz sempre se harmoniza com as perfeições de sua natureza”.[13]

Na parábola dos trabalhadores na vinha, Cristo mostra que Deus é livre na distribuição das suas dádivas. “Quero dar a este último tanto quanto a ti. Porventura não me é lícito fazer o que quero do que é meu? Ou são maus os teus olhos porque eu sou bom?” (Mat.20:14,15). Escrevendo sobre a ressurrei­ção, Paulo alude às plantas, e diz que Deus dá a cada uma um corpo como lhe apraz. “Mas Deus lhe dá corpo como lhe aprouve dar, e a cada uma das sementes o seu corpo apropriado” (1Cor.15:38). Se Deus é livre na distribuição das suas dádivas, e até na disposição dos corpos das plantas, Ele deve ter sido livre na concepção de seu decreto e deve ser livre na execução deste.

“Havendo Ele só, quando fez seu decreto, suas deter­minações não receberam influência de nenhum outro ser. Além do que, pelo fato de precisar agir de con­formidade com sua sabedoria e santidade, era livre para fazer ou não fazer. Dentro do âmbito de suas perfeições, Ele podia fazer o que queria. É quase uma irreverência afirmar que Deus não podia fazer dife­rentemente do que fez, apesar de ser provável que Ele não quis fazer diferente, sendo guiado pelo que é digno de seu próprio ser”.[14]

7. Incondicionalidade

Outra propriedade do decreto de Deus é ser incondicional. O decreto de Deus é incondicional em sentido semelhante ao de ser livre. Não depende, para sua execução, de nada, de cria­tura alguma, nem de nenhum ato que possamos praticar. “Sua execução de modo algum se interrompe em face de condições que apareçam ou deixem de aparecer”. Quando Ele decretou o fim, também decretou os meios, e estes meios são por Ele cria­dos no tempo e nas circunstâncias que devem resultar na exe­cução de sua vontade. Nós mesmos e os nossos atos somos real­mente parte integrante de seu plano, de sorte que este não de­pende de nós.

Mas, poder-se-á perguntar se não é verdade que muitos eventos, incluídos por Deus em seu decreto dependem de certas condições. E se assim é, esses eventos não são condicionais? Sim, os eventos dependem de suas condições, porém nem Deus nem seu decreto dependem delas, porque Deus mesmo é o criador tan­to das condições como dos eventos. Até as livres ações de suas criaturas dele dependem, porque foi Ele quem criou estas, co­mo são, no tempo e nas circunstâncias em que elas existem, e é Ele quem permite que elas procedam ou não em determina­das circunstâncias.

“Estamos agora preparados para abordar a proposição de que o ato de Deus, na elaboração de seu decreto, não depende de nada que suas criaturas façam. Nou­tro sentido, uma multidão de fatos decretados é con­dicional; todo o plano de Deus é uma sábia unidade, ligando os meios aos fins, as causas, com os efeitos. Com relação a cada um desses efeitos, sua ocorrência tem como condição a presença de sua causa, por força do próprio decreto de Deus. Mas ao passo que os eventos decretados são condicionais, o ato de Deus na elaboração do decreto não o é, ou não depende de nada que venha a ocorrer no tempo. Porquanto, no caso de cada evento dependente, seu decreto determi­nou a ocorrência da causa tanto quanto a de seu efei­to. A mesma coisa é igualmente certa com relação àqueles eventos de seu plano dependentes das livres ações de agentes livres. Não há melhor ilustração do modo como Deus decreta eventos dependentes ou condicionais, absolutamente, por decretar igualmen­te as condições que os trarão à existência, do que Atos 27:22 comparado com o v. 31. Os arminianos admi­tem que todos esses atos intermediários dos homens foram eternamente previstos por Deus e assim foram abrangidos em seu plano como condições: mas não fo­ram preordenados. Replicamos: se foram previstos com certeza, sua ocorrência era certa; se era certa, devia haver algo a determinar essa certeza. Esse algo ou era a preordenação sábia de Deus, ou era um fado ou destino, físico e cego. Os arminianos escolham”.[15]

8. Sabedoria

A última mas não a menor propriedade dos decretos de Deus é serem absolutamente sábios e, portanto, bons. Se pu­déssemos olhar de cima para os planos de Deus, olhar do céu, do ponto de vista divino, veríamos que perfeitos, maravilhosos e dignos de louvor eles são. A dificuldade conosco é que olha­mos da terra, de baixo, para eles, e das obras de Deus temos só uma visão humana. Da obra e dos planos de Deus temos só uma visão parcial, incompleta. Não temos uma visão de seu conjunto e por isso não compreendemos a harmonia e a, perfei­ção do que Ele faz. Sabemos, por exemplo que “todas as coi­sas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Rom. 8:28). No entanto, em nossa experiência não vemos co­mo certas coisas e acontecimentos possam contribuir para o nosso bem. Não o vemos porque contemplamos essas coisas e acontecimentos como fatos isolados uns dos outros. Não pode­mos ver os fatos que vêm depois para fazer os precedentes e os conseqüentes um todo completo destinado ao nosso bem e felicidade, e também à glória de Deus. No texto acima citado há uma palavra muito importante, que explica como todas as coi­sas operam para o nosso bem, a saber, o advérbio juntamente. Fatos isolados em nossas vidas não contribuiriam para o nosso bem, mas todos os fatos, tomados em seu conjunto, fazem isso. E talvez nunca vejamos a harmonia e a perfeição dos planos de Deus enquanto estivermos aqui neste mundo, mas somente quando chegar o fim. Jó, por exemplo, não podia ver o propó­sito de seus sofrimentos até que o fim chegou, quando tudo se tornou claro, e o Senhor fez sua última condição mais feliz do que a primeira (Jó 42:12; cf. Tg.5:11). O mesmo é verdade com relação aos castigos que suportamos nesta vida, porque “toda disciplina, com efeito, no momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois, entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça” (Heb.12:11).

Penso que a seguinte ilustração lançará alguma luz sobre o assunto. Houve uma jovem cujo pai falecera. Era crente, mas amara tanto ao pai que ficou amargurada, não querendo acei­tar a vontade de Deus. Seu pastor, visitando-a, encontrou-a a trabalhar num lindo bordado. Enquanto conversavam, ela observou:

“Pastor, não compreendo por que Deus leva um ho­mem como o meu pai, tão bom crente, tão bondoso para a família, tão útil à igreja e a todo o mundo, e deixa tanta gente que não presta para nada, que é uma vergonha e desgraça para todos”.



O ministro não respondeu logo, mas continuou a conversar sobre outros assuntos. Daí a pouco pediu para ver o bordado em que a moça trabalhava. Quando ela lho entregou, ele de propósito virou-o pelo avesso e, olhando esse lado, disse:

“Não compreendo por que uma moça inteligente como você gasta seu tempo a fazer uma coisa tão feia: um alinhavo aqui, outro ali, sem um plano ou harmo­nia. Que coisa feia!”.

A moça atalhou de pronto:

“Mas, pastor, o senhor está vendo o lado avesso do bordado; está vendo o lado errado”.

Então o pastor virou o bordado e fixou a vista no lado direito. Como era lindo o desenho! E disse:

“Minha jovem, o que fiz com o seu bordado é o que fazemos com o plano de Deus. Olhamos de baixo. Vemos somente, por assim dizer, o lado avesso, de modo que não podemos compreender a sua beleza, perfeição e sabedoria. Se pudéssemos vê-lo de cima, do ponto de observação de Deus, seríamos capazes de compreender, de ver a harmonia de suas várias par­tes. Seríamos capazes de compreender como cada acontecimento se ajusta ao plano divino, até aqueles que nos perturbam e fazem sofrer muito”.

Podemos ficar certos que o plano ou decreto de Deus sem­pre é sábio e perfeito, ainda que tenha incluídos nele pecado e sofrimentos, permitidos por certos desígnios seus, mas que Ele é capaz de comandar e vencer no devido tempo. E podemos ficar certos que tudo redundará por fim em sua glória e nossa felicidade.

Há uma razão sábia para tudo quanto Deus tem feito ou fará; há uma razão boa para tudo quanto Ele permite. No fim tudo contribuirá para a sua glória: até sua permissão para a prática do mal redundará, como “a ira dos homens”, em seu lou­vor (SI.76:10). Reconhecendo como era sábio o decreto de Deus, Paulo exclamou no fim do capítulo onze de Romanos, depois de discorrer sobre a predestinação: “ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria, como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos e quão inescrutáveis os seus caminhos!” (Rom. 11:33).

“Embora haja no decreto muita coisa que ultrapassa a compreensão humana e é inexplicável à mente finita, nada Ele contém que seja desarrazoado ou arbitrário. Deus formou seu desígnio com penetração sá­bia e conhecimento”.

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